Minha biblioteca está de mudança. Chamo um transportador. Ele chega no seu caminhão. “Nossa, mas aí tem livro mesmo. Da até pra montar uma loja e vender tudo.” A lógica do homem simples, confesso não-leitor e admirador da excentricidade chamada livro – ainda que o diga com outras palavras -, é sincera e irretocável. É tanto livro que, se fosse vender, daria uma grana boa. O problema começa aí: não daria. Vender livro não tá fácil pra ninguém. Revender, então, é uma luta. Tenho amigos no ramo, e vejo abnegação, jamais ganância por lucro.
Livros tem o poder de encantar quem lê e quem não lê. Quem lê, viaja transportado pela imaginação e o conhecimento. Quem não lê, anda nas nuvens com a visão de quem ali tem algo inalcançável, embora, verdade seja dita, desnecessário. Ficam encantados pela capa, pela quantidade de capas, pela representação de um mundo até bonito de se pensar, mas que não é para eles habitarem.
A cada rodada de entra e sai da casa com caixas de Shakespeare, Tolstoi, Dostoiévski, Drummond, Guimarães Rosa, J. J. Veiga – jamais faltaria -, Garcia Marquez e tantos outros autores que me acompanham por onde ando, ouço um novo espanto: “Mas é muito livro, né. O senhor vai vender tudo?” Em outros tempos, ouviria outra pergunta: o senhor comprou tudo ou ganhou? Mas por que mesmo o senhor tem tanto livro? O senhor já leu tudo isso? Meu interlocutor, pelo menos, já vai longe: o que viu fazer com tudo isso senão vender?
A razão de comprar livros é vender, eis o que ele me aponta. Nem precisava. Eu me pergunto sempre: por que diabos compro tantos livros? E continuo comprando. Na terapia resolvi de forma poética: o ato de comprar mantém firme a minha sanidade. Tá bom. Minha sanidade, onde estiver, agradece a lembrança. O aro de comprar me faz feliz, posso dizer, e talvez esteja na prática confirmando a psicologia. Me faz feliz de um jeito calmo, sereno, sábio.
Por um tempo eu me angustiava com a impossibilidade clara de ler tudo ainda nesta vida. Nem chego a Umberto Eco, mas tenho lá meus milhares de livros, e creio que, para serem bem lidos, me demandariam umas duas vidas. Pelo menos. Também na terapia saí-me com esta: não compro livros necessariamente pra ler. Compro pra ter, pra me benzer, pra me satisfazer de alguma forma. Aprendi uma coisa: não há que se ler todos os livros de cabo a rabo. Uns, leio capítulos. Outros, abro e fecho. De outros tantos, sinto o cheio e o arrepio de passar os dedos e sentir as palavras coçarem minha pele.
Tenho até calos nas pontas dos dedos de tanto tocar os livros. Sem pressa. Movimentos suaves. Um risco aqui, um aperto nos contornos ali e acolá. Leitura que se faz com os olhos fechados, a respiração se acelerando pouco a pouco, e o inquebrantável sorriso leve na boca. Um pouco mais e seria preciso passar a língua para umedecer o sonho que se forma entre o que as frases dizem e a inebriante audácia das ilusões subliminares do amor às histórias e suas infinitas interpretações. Minha relação com os livros alimenta meus pulmões.
Meus livros vão viajar oitenta quilômetros distante de mim. Vão ao encontro de outros livros, um acúmulo explicável, porém um desperdício, na visão do transportador e de gente demais que conheço. Fisicamente é papel inútil. Espiritualmente é um tumulto na alma. Digo isso porque me lembrei de uma conhecida que um dia me falou, ao ouvir que eu tinha traduções variadas da Bíblia: “Pois é. O pastor falou que isso é o diabo tentando confundir a cabeça da gente. Só devemos confiar no que ele diz.” Concordo. Bem mais simples a vida assim. O pastor falou, tá falado. O padre vaticinou, tá abençoado. Muita filosofia só serve pra fazer a gente achar que sabe demais. Basta os servos de Deus saberem. A gente saber, pra quê?
Nas viagens que meus livros fazem, muito se perde. Claro. Páginas somem. Sujeira se acumula. A convivência se esvai na saudade. Sem exagero. Tenho saudade de poder andar entre estantes. Aí é que está: a grande ausência não é dos livros, é dos que sinto quando estou no meio deles. De quem sou com eles em minha volta. Poderia dizer que as viagens dos filhos não substituem o espaço que ocupam no coração. Verdade. Meus livros viajam dentro de mim sem sair do meu sentimento. Não vão a lugar nenhum: eles vêm, mesmo quando parece que vão. Eles estão todos onde estou, ainda que dispersos em salas em duas cidades, e uma terceira eventualmente.
Na mudança de agora, estão na estrada histórias maravilhosas, e parte da minha história recente, que cabe no mesmo caminhão. Estou de mudança. Não sei quantas vezes mudei na vida. Não dou conta de enumerar quantas páginas enchi de vida e depois guardei nos meus olhos, aos olhos de quem lê, para ler no meu simples olhar a vida. Como não dá pra achar ruim o que muda, se cala, se desloca, se transforma. A mudança me leva e me deixa. Tanto vai no caminhão quanto fica onde permaneço como livro em progresso, obra em construção letra por letra, ponto por ponto. O transportador que não lê os livros não me lê também. Mal sabe ele que não tenho fim. Viver e morrer me fazem brotar. De novo. Sempre novo em folhas.
Vassil Oliveira é jornalista, poeta e escritor
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